segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Afinal quem são os ASSASSINOS DA ESCOLA?


Este é um título de um livro da francesa Carole Barjon, jornalista, sobre a degradação pedagógica em escolas francesas. Lá como cá. Eis o início do livro que acaba de sair na Gradiva:

Um crime contra a sociedade

"Setembro de 2003. Sentada juntamente com outros pais de alunos numa sala de aulas da escola do 2.º e 3.º ciclos Pierre de Ronsard, em Paris, assisto à reunião de recepção da turma de 6.º ano1 que o meu filho acaba de integrar. Situada no coração da planície de Monceau, esta escola acolhe, maioritariamente, os filhos da burguesia do bairro, mas também, pela sua proximidade com a estação de Saint Lazare, os alunos vindos dos subúrbios a noroeste. No fim do 9.º ano, os alunos procuram normalmente entrar nas escolas mais próximas: Carnot, Chaptal ou Condorcet.

Uma senhora pergunta à directora da escola, que é também professora de Letras: «Vai fazer ditados?» Incrédula, não compreendo a sua questão. A professora, pelo contrário, não parece espantada com a pergunta: «Sabe, minha senhora, hoje em dia, nós [quem é este «nós»?] consideramos que os ditados não são necessariamente a melhor maneira de avaliar a competência ortográfica dos alunos. Existem muitos outros meios.» O quê...? «De resto», continua ela, «a ortografia não é um critério essencial
para definir o nível do aluno em língua materna.» É verdade, sem dúvida. Contudo, parece‑me que contribui para isso. Continuo intrigada com aquele «nós» que a professora acaba de referir e que parece designar uma qualquer autoridade oculta. E estou muito espantada com a pouca importância que ela parece dar à ortografia...

Um jovem pai, de calças de ganga e ténis, manifestamente tão incrédulo quanto eu, insiste: «Desculpe, mas os alunos não deveriam dominar a ortografia e a gramática no fim do 1.º ciclo? Na sua opinião, quando deve isso acontecer?» Depois acrescenta, a rir‑se: «Posso esperar que no fim do 2.º ano a minha filha me envie postais que não estejam pejados de erros?» Resposta da professora,
que também sorri: «Sabe, hoje considera‑se que a aprendizagem da língua se faz durante todo o secundário e até ao seu final.» Silêncio na sala. Ela prossegue: «Além disso, caro senhor, hoje pode perfeitamente vencer‑se na vida sem se dominar a ortografia. Eu própria tenho um sobrinho bastante bem‑sucedido em informática e que ainda dá muitos erros.» Vale a pena citar o remate da argumentação da senhora professora: «De resto, hoje há computadores que corrigem a ortografia...»

Estou siderada. Começo, de imediato, a tomar notas.  Na verdade, teria compreendido um discurso destes se tivesse saído da boca de um director de uma empresa («O meu novo colaborador é formidável. Claro que sou obrigado a mandar reescrever as cartas que ele redige à minha secretária, mas é verdadeiramente bom»), mas não consigo aceitar o que ouvi vindo da parte de um professor de Letras. Abstenho‑me de reagir — reagir a quê, afinal? —, embora sinta que não fui a única dos presentes a ficar perplexa.

No dia seguinte entro em contacto com aquela que foi, um ano antes, no 6.º ano, a excelente professora de Francês da minha filha mais velha. Fico a saber que conservou o hábito dos ditados. Daí não me ter apercebido de que estes já não constavam da prática educativa. Confidencia‑me que tem de ter «cuidado» porque não age «de acordo com os cânones»... Usando o espaço de liberdade pedagógica permitido aos professores, ela transgredia as «recomendações» do Ministério. Esta mulher admirável era mal vista pela hierarquia e, por consequência, mal classificada... A sua carreira estava comprometida. Foi assim que descobri que alguns professores resistiam. Ainda...

Três anos antes, quando os meus filhos estavam na escola primária, alguns incidentes tinham‑me chamado a atenção. Uma tarde, o meu filho trouxe da escola um texto para copiar: «Pegas num bastao e pintas‑o de verde!» Faltava o til no a de «bastão» e havia um grave erro na utilização do pronome pessoal... Como fazer para evitar que ele escrevesse coisas erradas sem atentar, com esta minha intervenção, contra a necessária autoridade da professora? Optei por lhe explicar que a professora devia estar cansada e fi‑lo copiar correctamente o texto. E escrevi de forma muito cordial à professora, na secção da caderneta do aluno destinada à correspondência escola‑família, solicitando‑lhe que verificasse a correcção ortográfica do meu filho, uma vez que, «como sabe, a
palavra do professor tem muito mais peso que a dos pais». Mas ela levou a mal. Dois dias mais tarde, à saída da escola, a professora insistia obstinadamente que eu estava enganada. Depois de ter tentado, de forma breve, lembrar as regras de acentuação e de pronominalização, achei que não devia insistir. Na verdade, acabei praticamente por me desculpar, uma vez que o incidente poderia acabar mal.

Noutra tarde, a minha filha contou‑me que o seu professor, um jovem simpático, aberto, «muito cool», tinha escrito no quadro o verbo francês «nomer». Um aluno aventurou‑se: «Desculpe, professor, essa palavra não se escreve com dois m?» «Hã? Sim, acho que tens razão.» O professor verificou e corrigiu. Depois, virou‑se para os alunos e disse: «Sabem, meninos, a ortografia não é o meu forte. Portanto, se virem erros quando escrevo no quadro, não hesitem em dizê‑lo.» A confissão dele tinha o mérito da lucidez e da franqueza, mas não deixava de constituir um problema. Depois destes dois episódios, comecei a questionar‑me sobre a formação dos novos professores nas escolas de docentes e sobre os famosos IUFM (Institutos Universitários de Formação de Professores),
criados por Lionel Jospin, ministro da Educação no início dos anos 1990.

Desde então, algumas pessoas da área (professores e ex‑ministros) explicaram‑me que era muito difícil, apesar do que mostravam as estatísticas, abordar a questão do nível dos alunos sem que os professores fossem os primeiros a sentirem‑se postos em causa. Este facto levou, por exemplo, François Bayrou, ministro da Educação entre 1993 e 1997, a apressar‑se a deixar cair por terra um relatório da Direcção de Estudos e Prospectiva sobre o analfabetismo. Ao ler neste relatório que 15% a 20% dos estudantes de cada geração não dominavam a leitura à entrada no 2.º ciclo, exclamou: «Isto não pode sair! É um insulto para os professores!» E arrumou o dossiê numa gaveta. O episódio, relatado pela jornalista Sophie Coignard, foi‑me confirmado por uma testemunha da cena.

Embora compreensível, esta reacção do corpo docente prevista por Bayrou é, no entanto, lamentável. O objectivo não é incriminar os professores, que não cessam de ser desestabilizados por 30 anos de incessantes reformas. O que está em causa é a sua formação inicial e os métodos de aprendizagem. Os responsáveis por esta situação são principalmente aqueles que criaram e desenvolveram os IUFM e definiram e estabeleceram os conteúdos que ali se ensinam.

Ainda no início de 2000, o meu filho, então no 7.º ano, mostrou‑me um exercício de gramática que lhe tinham mandado fazer. Em duas páginas decoradas com desenhos de algumas personagens, ele devia identificar os «enunciados ancorados nas situações de enunciação». De onde saiu este estranho saber e linguajar? Tento ver claramente, ou seja, perceber. «Onde está a tua lição?» «É isto, a lição.» «Não. Este é o exercício que te pedem para fazeres.» Tenho de me render às evidências. Nem no caderno nem no manual dele existe qualquer lição que possa servir de referência.

Telefono a uma amiga, professora de Letras, e, no dia seguinte, falo também com uma professora que trabalha na escola do meu filho. Ambas me fornecem a chave do mistério: «Na verdade, trata‑se
apenas de uma comunicação, uma conversa.» «E porque não se formula a pergunta de forma mais simples?» Admito não ter entendido a resposta. Mas, a partir daí, comecei a pensar que algo
perturbador estava a acontecer.

Depois da ortografia, a gramática... Só mais tarde virei a compreender a gravidade da situação, quando os meus filhos começarem a aprender línguas estrangeiras. Desejo boa sorte ao professor de Inglês que tiver de explicar a um aluno que só tem noções básicas da gramática que o adjectivo é invariável na língua de Shakespeare. Boa sorte também aos alunos para interpretarem um enunciado
de matemática mal redigido. Sei avaliar a gravidade da situação, pois acredito que um bom domínio da gramática representa não apenas uma condição sine qua non para uma boa ortografia, como constitui, sobretudo, tal como explica Véronique Marchais, professora de Francês em Joue‑les‑Tours,
«um primeiro acesso ao raciocínio e à estruturação do pensamento».

Estupefacta, quis saber quem esteve na origem disto tudo, a quem se deve e por que o fizeram. Esta questão perturbava‑me ao ponto de chegar a imaginar uma qualquer conspiração. Veio‑me
então à memória uma reportagem que fiz na Argélia para o Nouvel Observateur, na altura da ascensão da FIS (Frente Islâmica de Salvação), em 1989. Encarregada de inquirir sobre os problemas da sociedade, entrevistei uma mulher excepcional, professora de Letras e linguista. Era uma francófona de origem cabila. Na entrevista que o Nouvel Observateur então publicou, ela explicava que a arabização desejada pelos islamitas fazia parte de uma estratégia que visava separar as crianças dos seus pais francófonos.

Esta recordação perseguia‑me. E se aquelas incompreensíveis novas regras de gramática tivessem sido secretamente elaboradas, no meu país, com um objectivo similar, ou seja, afastar as crianças dos seus pais, para que a nova geração tivesse uma cultura distinta da deles, tal como era prática corrente nos regimes totalitários? Esta comparação era, evidentemente, ridícula, pois estávamos em França. Quem, no topo da hierarquia do Estado, poderia alimentar semelhante ideia? Estas congeminações de perseguição absurdas perturbavam‑me o espírito. E ficava‑me por ali, suficientemente ocupada com as minhas actividades de mãe de família e de jornalista de política.

Quanto à gramática, restava‑me optar por ajudar os meus filhos a desenvencilharem‑se... É, sem dúvida, o mesmo que a maioria dos pais preparados para o fazer têm, decerto, feito. Mas nem todos os pais estão nas mesmas condições, bem longe disso. Este é um dos aspectos do problema. Tive sorte: os meus pais eram pessoas instruídas e recebi uma boa formação em língua materna quando eu própria estava nos bancos da escola. E tenho, além disso, alguns amigos letrados junto dos quais me posso informar e que me podem ajudar a desencriptar estes códigos. Mas e os outros? Os pais dos meios mais desfavorecidos? Os que não têm as ferramentas intelectuais necessárias para poderem ajudar os filhos, que não dominam esses códigos e não têm ninguém a quem pedir ajuda? E que nem possuem meios financeiros para recorrerem a aulas particulares em estabelecimentos privados?
Como farão se o seu filho não for um pequeno génio capaz de ultrapassar, sozinho, todos os obstáculos criados e acumulados pela escola, desde a introdução do método global de aprendizagem da leitura e da imposição de novas pedagogias, passando pela quase supressão das aulas de gramática? O que acontecerá a essas crianças menos afortunadas? Para onde foram, onde estavam, nestes anos 2000, os autoproclamados combatentes contra as desigualdades da escola, enquanto a percentagem de crianças que chegava ao 6.º ano sem saber ler não parava de aumentar? Porque é que o sinal de alarme não disparou? Estou indignada com esse silêncio, um silêncio cúmplice. Indignada também com a hipocrisia que, frequentemente, o acompanhou. Estou, desde há muito tempo, farta de ver demasiadas pessoas defenderem a mistura social perante os seus auditórios (públicos ou privados), mas irem logo «meter uma cunha» aos amigos com poder para conseguirem uma excepção para os filhos sempre que algum deles é colocado numa escola de má qualidade. A maior parte deles não teve, como alguns tiveram, a boa ideia (ou os meios) de se instalar nos bairros «bons», de forma que a sua progenitura pudesse entrar nas escolas «boas». Hoje, como ontem, há demasiados defensores fervorosos da escola pública que se apressam a inscrever os seus filhos em estabelecimentos privados, ignorando a moral que consiste, em princípio, em aplicarmos a nós próprios o que preconizamos para os outros. (...)"

Carole Barjon

1 comentário:

marina disse...

tive uma epifania :) só pessoas boas alunas , da primária até à licenciatura ( mestrado ?) , deveriam poder decidir sobre a escola... a democracia tem coisas muito más , uma delas é fazer chegar a lugares de decisão "satisfaz menos" desde pequeninos que odiaram a escola :)

NOVA ATLÂNTIDA

 A “Atlantís” disponibilizou o seu número mais recente (em acesso aberto). Convidamos a navegar pelo sumário da revista para aceder à info...