domingo, 26 de abril de 2015

O MEDO DO CONHECIMENTO


Introdução do livro "O Medo do Conhecimento. Contra o Relativismo e o constrtutivismo" de Paul Boghossian que acaba de sair na Gradiva, uma leitura que recomendo vivamente tal como outras da muito boa colecção "Filosofia Aberta". Têm sido defendidas neste blogue de ciência posições antirelativistas e anticonstrutivistas, pelo que esta é mais uma:

Igual validade

A 22 de Outubro de 1996, o New York Times publicou um artigo invulgar. Intitulado «Criacionistas de Tribos Índias Contrariam Arqueólogos», descrevia um conflito surgido entre duas concepções sobre a origem das populações nativas americanas. Segundo a concepção tradicional, extensivamente confirmada por estudos arqueológicos, os seres humanos entraram nas Américas vindos da Ásia, atravessando o estreito de Bering, há cerca de 10 000 anos. Inversamente, alguns mitos de criação nativos americanos afirmam que os povos nativos têm vivido nas Américas desde que os seus antepassados emergiram à superfície da Terra, vindos de um mundo subterrâneo de espíritos. Como um representante dos Cheyenne River Sioux, uma tribo Lakota com base em Eagle Butte, Dakota do Sul, disse:

- Sabemos de onde viemos. Somos descendentes do povo Búfalo. Eles vieram do interior da Terra depois de os espíritos sobrenaturais terem preparado este mundo para que a humanidade aí vivesse. Se os não‑índios preferem acreditar que evoluíram de um macaco, seja. Nunca encontrei nem sequer cinco Lakotas que acreditassem na ciência e na evolução.

O New York Times continuava o artigo observando que muitos arqueólogos, divididos entre o seu compromisso com o método científico e a sua apreciação da cultura nativa, «têm sido atraídos para um relativismo pós‑moderno no qual a ciência é apenas mais um sistema de crenças». Roger Anyon, um arqueólogo britânico que trabalhou para os Zunis, foi citado dizendo:

- A ciência é apenas uma das muitas maneiras de conhecer o mundo. [A mundivisão dos Zunis] é tão válida quanto a perspectiva arqueológica sobre a pré‑história.

Outro arqueólogo, o Dr. Larry Zimmerman, da Universidade de Iowa, foi citado apelando a um tipo diferente de ciência, na fronteira das formas ocidentais de conhecer com as formas índias de conhecer.

O Dr. Zimmerman acrescentava:

- Pessoalmente, rejeito a ciência como forma privilegiada de ver o mundo.

Por muito impressionantes que sejam estas afirmações, teriam um interesse meramente episódico se não fosse a enorme influência da perspectiva filosófica geral que representam. Em especial na academia, mas também e inevitavelmente fora dela, a ideia de que existem «muitas formas igualmente válidas de conhecer o mundo», sendo a ciência apenas uma delas, tem criado raízes muito profundas. Em muitos campos das humanidades e das ciências sociais, esta espécie de «relativismo pós‑moderno» sobre o conhecimento alcançou o estatuto de ortodoxia. Chamar‑lhe‑ei (tão neutralmente quanto possível) a doutrina da

Igual validade:

- Há muitas maneiras radicalmente diferentes, mas «igualmente válidas» de conhecer o mundo, sendo a ciência apenas uma delas.

Vejamos alguns exemplos representativos de académicos que aceitam o pensamento básico por detrás da igual validade:

- Quando reconhecemos o estatuto convencional e artefactual das nossas formas de conhecer, ficamos em posição de perceber que nós próprios, e não a realidade, somos responsáveis por aquilo que conhecemos.

- A ciência do primeiro mundo é uma ciência entre muitas outras...

- Para o relativista, não há sentido na ideia de que algumas normas ou padrões são realmente racionais, distintos dos meramente aceites como tais. Como pensa que não existem normas de racionalidade sem contexto ou supraculturais, não vê as crenças racionais ou irracionais como duas classes de coisas distintas e qualitativamente diferentes.

Haveria muitas mais passagens que poderíamos citar.

O que há na doutrina da igual validade que parece tão radical e contra‑intuitivo?

Bem, normalmente pensamos que, numa questão como a da pré‑história americana, há uma maneira de as coisas serem que é independente de nós e das nossas crenças sobre isso — um facto objectivo sobre a questão, por assim dizer, do local de origem dos primeiros americanos.

Não somos necessariamente objectivistas acerca de factos neste sentido em relação a todos os domínios do juízo. Em relação à moralidade, por exemplo, algumas pessoas, incluindo filósofos, tendem a ser relativistas: afirmam que há muitos códigos morais alternativos que especificam o que é considerado uma boa ou uma má conduta, mas não há factos em virtude dos quais alguns desses códigos são mais «correctos» do que os outros. Outras pessoas podem ser relativistas em relação à estética, em relação àquilo que é considerado belo ou artisticamente valioso. Estes tipos de relativismo sobre questões de valor são discutíveis, obviamente, e continuam a ser discutidos. No entanto, mesmo que os consideremos em última instância implausíveis, não nos chocam de imediato como absurdos. Mas, sobre uma questão factual como as origens dos primeiros americanos, tendemos a pensar, sem dúvida, que há algum facto objectivo sobre a matéria.

Podemos não saber que facto é esse, mas, tendo formado um interesse na questão, procuramos conhecê‑lo. E temos uma variedade de técnicas e de métodos — observação, lógica, inferência a favor da melhor explicação, e assim por diante, mas não a leitura de folhas de chá ou o olhar para uma bola de cristal — que consideramos serem as únicas maneiras legítimas de formar crenças racionais sobre o assunto. Estes métodos — os métodos característicos daquilo a que chamamos «ciência», mas que caracterizam também os modos normais de procurar conhecimento — conduziram‑nos à concepção de que os primeiros americanos vieram da Ásia através do estreito de Bering. É claro que esta concepção pode ser falsa, mas é a mais razoável, dados os indícios — ou assim somos normalmente levados a pensar.

Porque acreditamos em tudo isto, submetemo‑nos aos resultados da ciência: atribuímos‑lhe um papel privilegiado ao determinar o que se ensina às nossas crianças na escola, o que se aceita como probatório nos nossos tribunais e o que serve de base às nossas políticas sociais. Aí encaramos como facto aquilo que é verdadeiro. Queremos aceitar apenas aquilo sobre o qual há boas razões para acreditarmos ser verdadeiro; e vemos a ciência como a única boa maneira de chegar a crenças razoáveis sobre o que é verdadeiro, pelo menos no domínio do puramente factual. Por isso, submetemo‑nos à ciência.

Contudo, para que este tipo de deferência à ciência seja correcto, o conhecimento científico tem de ser privilegiado — é melhor não haver muitas outras maneiras radicalmente diferentes, mas igualmente válidas de conhecer o mundo, e em que a ciência seja apenas uma delas. Se a ciência não fosse privilegiada, teríamos de atribuir tanta credibilidade à arqueologia como ao criacionismo zuni, tanta credibilidade à evolução como ao criacionismo cristão — que é exactamente a concepção defendida por cada vez mais académicos e cada vez mais repetida por pessoas fora da academia.

Assim, a igual validade é uma doutrina de importância considerável, e não só dentro dos limites da torre de marfim. Se os numerosos académicos nas humanidades e nas ciências sociais que a subscrevem estão certos, não estamos apenas a cometer um erro filosófico de interesse para um pequeno número de especialistas na teoria do conhecimento: enganámo‑nos fundamentalmente nos princípios segundo os quais a sociedade devia ser organizada. Por conseguinte, há mais urgência do que o habitual em questionar se estão certos.

A construção social do conhecimento

Como é que tantos académicos contemporâneos acabaram por se deixar convencer de uma doutrina tão radical e contra‑intuitiva como a da igual validade?

Trata‑se de uma questão interessante, saber se a explicação para este desenvolvimento é primariamente intelectual ou se é de natureza ideológica; há indubitavelmente um elemento de cada.

 Ideologicamente, a atracção pela doutrina da igual validade não pode ser dissociada do seu aparecimento na era pós‑colonial. Os defensores da expansão colonial procuraram muitas vezes justificar o seu projecto com o argumento de que os sujeitos colonizados tinham muito a ganhar com a ciência e a cultura superiores do Ocidente. Num clima moral que virou definitivamente as costas ao colonialismo, é tentador dizer não só — o que é ver dade — que não se pode justificar moralmente a subjugação de um povo soberano em nome da difusão do conhecimento, mas também que não existe uma coisa como o conhecimento superior, mas apenas conhecimentos diferentes, cada um apropriado ao seu contexto particular.

Em termos intelectuais, a atracção pela igual validade parece derivar da convicção de muitos académicos de que o melhor pensamento filosófico do nosso tempo afastou as concepções objectivistas da verdade e da racionalidade que assinalei há pouco e substituiu‑as por concepções de conhecimento que reclamam igual validade. Quais são estas concepções?

A ideia no centro destas novas concepções «pós‑modernas » do conhecimento está concisamente expressa na seguinte passagem:

- As epistemólogas feministas, em comum com muitas outras correntes da epistemologia contemporânea, já não vêem o conhecimento como uma reflexão neutral e transparente estabelecida por processos transcendentes de avaliação racional. Ao invés, a maioria aceita que todo o conhecimento é conhecimento situado, que reflecte a posição do produtor de conhecimento num certo momento histórico e num dado contexto material e cultural.

Segundo esta ideia central, a verdade de uma crença não é uma questão de como as coisas se relacionam com uma «realidade que existe de forma independente»; e a sua validade não depende da sua aprovação por «processos transcendentes de avaliação racional». Ao invés, a possibilidade de uma crença ser conhecimento depende, pelo menos em parte, do contexto contingente social e material em que essa crença é produzida (ou mantida). A qualquer concepção do conhecimento que incorpora esta convicção central chamarei concepção do conhecimento da dependência social.

Recentemente, as versões mais influentes das concepções do conhecimento da dependência social têm sido formuladas nos termos da agora ubíqua noção de construção social. Todo o conhecimento, dizem, é socialmente dependente porque todo o conhecimento é socialmente construído. Assim, irei debruçar‑me sobretudo sobre as concepções socioconstrutivistas do conhecimento.

No entanto, seja como for fundamentada a dependência social do conhecimento, deve ser imediatamente claro como essa concepção do conhecimento pode ajudar a reclamar a igual validade, se fosse admitida. Se o facto de uma crença ser conhecimento fosse sempre uma função do contexto social contingente em que é produzida, então poder‑se‑ia muito bem dizer que aquilo que é conhecimento para nós não é conhecimento para os zunis, apesar de termos todos acesso às mesmas informações (falarei mais sobre isto).

Filosofia na academia

Sublinhei a influência que as ideias construtivistas exercem actualmente sobre as humanidades e as ciências sociais. Contudo, há uma disciplina de humanidades em que a influência dessas ideias é muito fraca, que é a própria filosofia, pelo menos tal como é normalmente praticada nos departamentos de filosofia analítica no mundo de língua inglesa.

Isto não significa que essas ideias não tenham recebido apoio de filósofos analíticos. Pelo contrário, em sua defesa, poderíamos citar uma boa parte dos filósofos mais proeminentes desta tradição — por exemplo, Ludwig Wittgenstein, Rudolf Carnap, Richard Rorty, Thomas Kuhn, Hilary Putnam e Nelson Goodman. Estes filósofos, por sua vez, poderiam evocar alguns precedentes intelectuais importantes.

Immanuel Kant negava que o mundo, na medida em que o podemos conhecer, pudesse ser independente dos conceitos segundo os quais o apreendemos. David Hume questionava o nosso direito de pensar que existe apenas um conjunto correcto de princípios epistémicos que captam aquilo que faz uma crença ser racionalmente sustentada. E Friedrich Nietzsche pode ser lido como questionando se alguma vez somos realmente levados à crença por meio de provas, em oposição a outros motivos não epistémicos — interesse próprio ou ideologia — que podem agir sobre nós.

No entanto, apesar de todo o seu passado intelectual distinto e de toda a atenção que receberam nos tempos recentes, é justo dizer que estas concepções anti‑objectivistas da verdade e da racionalidade não são geralmente aceites nos departamentos normais de filosofia no mundo de língua inglesa.

O resultado foi um afastamento progressivo da filosofia académica em relação ao resto das humanidades e das ciências sociais, levando a níveis de acrimónia e de tensão nas universidades americanas que mereceram o nome de «guerras da ciência».

Os académicos simpatizantes do pós‑modernismo queixam‑se de que a defesa da revisão das concepções tradicionais do conhecimento é esmagadoramente clara desde há muito tempo e que só a intransigência habitual da ortodoxia estabelecida pode explicar a resistência com que estas novas ideias têm sido recebidas. Os tradicionalistas, por outro lado, têm ignorado impacientemente os seus colegas inclinados para a filosofia nas humanidades e nas ciências sociais mais por considerações de correcção política do que por verdadeiras considerações filosóficas.


1 comentário:

TomaZ disse...

Hoje falaremos deste livro aqui:
https://filosofiacritica.wordpress.com/2015/05/21/filosofia-em-gondomar/

Entrada livre.

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