domingo, 29 de junho de 2014

Livros com Química: Ferreira de Castro e A Selva


Assinalam-se hoje, 29 de Junho, 40 anos da morte de José Maria Ferreira de Casto, um dos mais notáveis escritores portugueses do século XX que é também um dos mais conhecidos e traduzidos.

 

Com doze anos José Maria Ferreira de Castro, nascido em 1898, partiu para o Brasil para tentar a sua sorte. Não teve muita, mas dessa experiência resultaram dois excepcionais romances, Os emigrantes de 1928 e A Selva de 1930, que ainda hoje nos fazem meditar sobre a condição humana. Estes dois livros, mostram-nos com grande realismo as vidas das pessoas pobres, e mesmo remediadas, que emigravam para o Brasil, assim como as condições de vida dos brasileiros com que se relacionavam. Para além disso, através das reflexões das personagens, dos seus diálogos e da descrição das suas acções e processos técnicos em que estão envolvidos, Ferreira de Castro consegue simultaneamente manter-se actual e dar-nos uma imagem viva do passado.

Em A Selva, Ferreira de Castro dá-nos uma imagem muito forte das condições de vida duras e de escravatura (de facto) em que viviam os seringueiros que trabalhavam na recolha da borracha no início do século XX. Estes, uma vez chegados ao seringal, ficavam presos, através de um esquema de empréstimos e dívidas, aos aviadores que lhes forneciam os materiais de trabalho, alojamento e alimentação, pagos em troca da borracha recolhida. Ferreira de Castro, esteve nessa situação quase quatro anos e, por isso, no livro podemos também encontrar descrições muito precisas dos métodos de recolha e tratamento do látex, do qual se obtém a borracha natural.

De acordo com o livro, o látex era coagulado com o fumo proveniente de uma espécie de fogareiro em forma de funil ou cone, deixando-o cair numa espécie de pá, formando-se peles de borracha que eram enroladas em bolas de borracha, as quais eram depois pesadas e vendidas. É a acidez do fumo que Ferreira de Castro bem notou, assim como as suas propriedades como fungicida e bactericida, que permitem o tratamento do látex e a sua transformação em borracha natural. Esta borracha era mais tarde enviada para o estrangeiro onde seria vulcanizada e transformada em pneus, bolas, os quais seriam usadas por pessoas que não saberiam que a borracha era obtida em condições tão duras e miseráveis, o que suscita algumas reflexões pertinentes à personagem principal do livro.

O processo usado na altura para coagular o látex era com certeza muito pouco saudável, como se pode ver na figura. Mais tarde, com a industrialização do processo de produção de borracha natural passou a usar-se ácidos diluídos e compostos de enxofre para evitar o ataque biológico da borracha, embora o tratamento pelo fumo das peles de borracha continue a ser um processo eficaz de evitar o ataque biológico.


Entretanto, passadas cerca de duas décadas surgiu a borracha sintética e actualmente já não estamos dependentes da borracha natural e da sua extracção. As condições miseráveis em que se obteve borracha natural no Congo ou no Brasil são hoje uma coisa do passado que a química veio também contribuir para eliminar.

Notável em A selva é também a tensão erótica. No entanto, no livro, ao contrário do filme feito a partir deste, o desejo não se concretiza nem parece ser correspondido ou sequer reconhecido. Num dos momentos mais memoráveis do livro, este desejo entra em diálogo com a morte e a finitude da vida a propósito da observação (e comentário com rigor científico, mas não menor terror) de fogos-fátuos no cemitério do seringal.

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